terça-feira, 19 de maio de 2015

Exames e culto da desigualdade



A ideia de que as crianças progridem mais – se tornam mais competitivas - se cedo forem habituados à clivagem dos exames, tal como era feito há cinquenta anos atrás, está a ser introduzida hipócrita e sub-repticiamente, sob o pretexto de combater o “facilitismo” e as famosas passagens administrativas. Na verdade o modelo que está a ser reintroduzido só vem agravar o problema da divisão da sociedade entre escolarizados e não escolarizados, como se isso fosse algo justo, natural e inevitável. Os exames seriam uma forma de introduzir mais justiça no sistema, mas não é verdade. Este modelo, comprovadamente, aumenta o abandono escolar e não resolve o combate às passagens administrativas nem garante que o facilitismo não continue a proliferar.

 É preciso entender que por de trás desta clivagem em fase de ensaio estão todas as outras que justificam a existência “natural” duma sociedade constituída por classes. A ideia (laica e republicana) do igualitarismo humano fica reduzida à sua expressão simbólica e “espiritual”,  tão paradigmaticamente expressa no clássico “somos todos iguais (ou irmãos) em Cristo”…  Em tudo mais, claro está,  somos desiguais – e devemos, pelos vistos, a continuar a sê-lo…

O primeiro preceito – e o mais sagrado – da Declaração Universal dos Direitos do Homem (uma herança da Revolução Francesa) é a de que, “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Nada mais  indiscutível e verdadeiro se todos os homens dispusessem também - à nascença - das mesmas garantias de acesso ao alimento, à habitação, aos cuidados de saúde, à segurança (familiar e societária) e à educação. Infelizmente sabemos que não é assim e é por isso que o Estado Social – ou o que resta dele - continua tão indispensável pois é o único instrumento social que colmata parte das desigualdades sociais mais gritantes com que a maioria das pessoas nasce.

É bom de ver que uma criança, mal alimentada, que vive num ambiente cultural pobre, que faz parte duma família desestruturada, que não tem condições adequadas para brincar ou para estudar, não está nas mesmas condições do que uma criança que vive num ambiente dito normal. Por outro lado há que dizer que a verdadeira igualdade só pode concretizar-se se for reconhecido que a essência da natureza humana é a singularidade. Cada ser tem as suas necessidades específicas, o seu potencial a realizar e é nisso que consiste a igualdade humana. É por isso que nos desportos se joga por escalões, que há campeonatos para homens e para mulheres, que há olimpíadas para “normais” e para “deficientes”. É por isso que as performances obtidas nos exames podem ser tão enganadoras.

O ensino pode ter escalões, classificações, mas nunca deve dar origem a classes, como acontecia no passado. As passagens de ano podem ser condicionadas, “esticadas”, diferidas, mas nunca consubstanciadas. Se uma criança “está a ficar para trás”- se alguém deu por isso -, que se investiguem as razões e se resolva o problema. Se não chegar um professor ou um assistente para a tarefa, que se recorram a dois. Se o problema não estiver na escola, mas na casa ou na família (se houver casa ou família), que se recorra a assistentes sociais, ou a outros especialistas. Mas que não venham com a desculpa de há falta de recursos. Recursos são o que mais abunda por aí. Não falta gente desocupada, com qualificações, que precisa de emprego. É bom que se tenha já em vista que as perspectivas de emprego no futuro – se houver futuro – com mais ciência ou menos ciência, é o de tomarmos conta uns dos outros...

Aos fóbicos da economia, aos que se preocupam com os custos destas operações, sugiro que pensem nisto: Sempre será melhor gastar dinheiro procurando melhorar a qualidade das pessoas do que gastá-lo em armas e sistemas repressivos para combater organizações criminosas ou delinquentes que nunca pararão de crescer se as coisas continuarem como estão na atualidade.

As crianças precisam de melhorar as suas qualidades cívicas, a sua interação com o mundo real, tal como aprofundar os seus conhecimentos em matemática e português. Fazer testes (exames) – não exclusivos à matemática e ao português - para estimular a aprendizagem podem ser bons instrumentos desde que não se limitem a essas disciplinas e não sejam um disfarce para introduzir um ensino estratificador de classes sociais. Se houver diferença nas crianças, diferença resultante de limitações psicofísicas, os índices ou classificações assinalarão as diferenças, sem necessidade de relevar diferenças de classe. A natureza dos seres vivos é realizar o máximo do seu potencial intrínseco, seja ele de que natureza for. A escola serve especialmente para ajudar a concretizar esse objetivo e não para medir níveis de memória ou habilidades especiais, que, frequentemente disfarçam mediocridades mais do que evidenciam qualidades.

E já agora: porque se vai desinvestindo nas artes – especialmente na música – mas também nas performativas e plásticas? Não é também mais um sinal (negativo) de que um ensino classista, discriminador, um culto da desigualdade, está em crescendo?


Daniel D. Dias

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