domingo, 13 de agosto de 2017

No outro lado

Não é possível mudar
apenas simulando a mudança

não é possível viver
apenas simulando estar vivo

a importância do que parece
supera a importância do que é

assim é há milénios
já no tempo dos faraós assim era
desde as cavernas que assim é
e assim, parece, vai continuar

o simulacro do viver é o nosso drama
drama reversível
em qualquer  momento
n o outro lado do espelho


Daniel D. Dias

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Venezuela: Charme discreto ou mácula sem perdão?


A Venezuela há muito que tem ricos, tão ricos que muitos vão passar o fim-de-semana à sua casa de férias que é do outro lado do Cararibe, na Florida. Claro: vão de jacto privado. Qual é o problema? A Venezuela é terra próspera.

A Venezuela teve muitos presidentes, quase sempre corruptos, durante muito, muito tempo, e o curioso é que já ninguém se lembra disso. Agora só se fala na ditadura daqueles malditos, daqueles fanáticos e loucos, esquerdistas… E na falta de respeito pela Constituição – até há muito pouco símbolo e sustentáculo do próprio regime -, que tão odiada e amaldiçoada tem sido, mas que, de repente, ganha virtudes inesperadas.

A Venezuela é um país rico, riquíssimo. Tem muitas, mesmo muitas riquezas: uma delas é a maior reserva de petróleo do mundo. É mesmo verdade. A Venezuela tem uma reserva petrolífera maior que a da Arábia Saudita e que a da Rússia… Só isso torna a Venezuela num país muito especial e talvez justifique muito do alarido que a “comunidade internacional” alardeia por aí.

Mas a Venezuela é um país tremendamente desigual. Ou melhor: A Venezuela era até há muito pouco tempo – menos de 20 anos - um país tremendamente desigual. Nesta altura é só um país razoavelmente desigual. Na Venezuela, antes de Chávez, os pobres não existiam. Melhor: existiam mas não eram reconhecidos. As zonas habitadas pelos pobres – essas imensas favelas (barrios), a perder de vista, a cercar as cidades, a tombar sobre os rios, onde viviam milhões e milhões de pessoas em condições deploráveis – eram registadas nos mapas oficiais da época, como “zonas verdes”… Quem tiver dúvidas ainda pode consultar.

Chávez chegou ao poder e começou de imediato a contestação. Para além das conspirações e tentativas de golpe de estado - uma delas quase concretizada em 2002 - todos os “media” diariamente, minuto a minuto, durante anos, bombardearam a atenção do público com a loucura de Chávez, com o seu caráter ditatorial, com a destruição da economia que ele estava a processar, etc.

Mas que crime afinal cometeu Chávez? Perseguiu a Igreja? Não, Chávez era católico. Perseguiu os ricos? Não. Durante o tempo que esteve no poder os ricos enriqueceram ainda mais. Que fez ele: No essencial utilizou o imenso rendimento do país – especialmente o proveniente do petróleo - para criar condições favoráveis à luta contra a pobreza. Nesse sentido foram construídos, milhões de casas – com razoável qualidade - para substituir os casebres insalubres, muitos hospitais, escolas e universidades. Pela primeira vez na história, foi erradicada a pobreza extrema. As pessoas passaram a ter acesso ao ensino gratuito e generalizado; foi reduzido, drasticamente, o analfabetismo. Os cuidados de saúde passaram a ser universais e gratuitos, melhorando substancialmente a saúde pública. Tudo isto levou a que a Venezuela passasse a integrar os países com Elevado Índice de Desenvolvimento Humano – IDH (lugar 71, em 188 países, a par da Turquia, à frente do Brasil, do México, da Colômbia). E isto são dados de 2016, já em pleno período de crise e de contestação.

Chávez, até à sua morte precoce em 2013, foi sempre a votos. E algumas vezes perdeu. Respeitou sempre os resultados e a “sua Constituição”. Mas sempre prosseguiu o seu programa. Para ele o desenvolvimento social não punha em causa a riqueza. Era adepto de um “mundo multipolar”. Por isso os ricos continuaram ricos – mais ricos – e poderosos. Quando foi substituído por Maduro – inevitavelmente um Maduro ainda muito pouco maduro -, a conspiração aumentou. Era então a grande oportunidade de acabar com a veleidade chavista de construir uma sociedade mais igualitária, há muito desejada. Mas, para grande desgosto da oposição, Maduro acabou por ganhar. À tira, mas ganhou.

Porém, a menor “estaleca” política de Maduro, a crise generalizada que então grassou no mundo, a queda do preço do petróleo, deram um novo impulso à “oposição”. Maduro, tal como Chávez, fala de paz, mas a oposição não quer nada com Maduro. A questão não está em ceder: está em desaparecer, em acabar com o regime. Não há acordos possíveis mesmo quando mediados pela Igreja.
A culpa é só da oposição? Claro que não. Maduro, ou o que ele representa, poderia talvez fazer maiores cedências, estabelecer um calendário de “conquistas” mais diluído no tempo, estabelecer alianças com classes intermédias, vender a gasolina mais cara, (que diabo, pelo menos isso), suavizar a irritante retórica esquerdista… Resultaria? Talvez sim, talvez não. No Brasil e na Argentina não houve projetos tão “socializantes” e a resposta que deram os poderosos desses países vejam qual foi. Observe-se o que se passa atualmente.

Maduro não recua e não se cala, e a oposição – que afinal é mundial, ou quase -, avança com a técnica mais moderna de liquidar estados. As revoluções coloridas, tipo primavera árabe, que combinam violência, contestação e propaganda sistemática através dos “media” e redes sociais. A sabotagem económica – bem real – o pânico gerado pelo boato lançado nos “media”, levam o público a açambarcar. Muitos bens são destruídos para gerar caos que é ampliado nos “media” e nas redes sociais. O crime violento – endémico na Venezuela – é usado para aumentar o caos e depois é atribuído às forças do regime.

É neste quadro que em 2015 a oposição vence as eleições legislativas. Todavia, o governo venezuelano é dirigido pelo presidente, não pelo parlamento, e, à oposição, que não está interessada em acordos, só lhe resta… sabotar. Sabota sistematicamente tudo porque só tem um objetivo: acabar com o regime.

É bom de ver que Maduro – e o que ele representa, entalado nesta situação cada vez mais extrema – só tem duas possibilidades: sucumbir ou avançar. A violência – muito ampliada pelos “media”, reconheça-se - aumenta nas ruas e os mortos – talvez maioritariamente chavistas – são contados como membros da oposição. A ideia de caos avança reforçada pela pressão internacional. É deste caldo que surge a ideia de refundar a constituição. É uma ideia estranha, talvez mesmo suicida, mas cuja lógica parece fácil de entender. É o regime a tentar sair do sufoco mesmo arriscando o erro.

É estranho isto? Não, não é. Se a direita estivesse no poder e nestas circunstâncias, o que faria? Seguramente há muito que teria decretado o estado de sítio. Por muito menos outros governos na América Latina já antes o fizeram. Veja-se, por exemplo, Temer, no vizinho Brasil. Periclitante no poder, que usurpou e que exerce ilegitimamente, já por duas vezes convocou as forças militares para as ruas.


A Venezuela é um paradigma deste nosso mundo controverso. À direita tudo se perdoa, mesmo a corrupção. O que não deve estranhar-se porque, afinal, a corrupção sempre foi o “leitmotiv” dessa direita interesseira. O que é preciso é manter a imagem, o tal charme discreto. Mas à esquerda, tudo deve brilhar. Tudo deve ser perfeito, inteligente, virtuoso, belo, incorruptível. A esquerda está proibida de pecar, de cometer erros. Um tostão gasto com um pobre preguiçoso é um crime incomensuravelmente maior do que milhares de falências fraudulentas cometidas deliberadamente por trafulhas ambiciosos.

A Venezuela é o paradigma dum mundo em que a pobreza ainda não é entendida apenas como uma desgraça evitável. Dum mundo em que persiste a ideia de que a miséria é um estigma, um castigo da natureza, uma mácula sem perdão.

Daniel D. Dias