O meu vizinho - 6
Já conheço o meu vizinho há tempo suficiente para
saber que é uma pessoa boa, generosa, alguém sempre disponível para colaborar
com os outros. O meu vizinho é das pessoas mais empáticas que conheço mas nem
sempre se mostra simpático. A carranca que por vezes exibe é talvez uma
proteção instintiva da sua natureza gentil.
Hoje, quando me cruzei com ele, pareceu-me que
transparecia uma boa disposição pouco frequente nele. E foi com esse pretexto
que meti conversa.
- Ou estou muito enganado ou o vizinho hoje está mais
otimista do que o costume… - disse, acintosamente.
- De facto estou mesmo. Nota-se assim tanto?
- Nota-se, pois… Mas ainda bem: não se diz agora que o
segredo de viver bem é manter um espírito positivo?
- Lá vem você com essas tretas “new age”… Qual
espírito positivo? É a realidade, amigo. São os sinais de mudança… Ainda não
deu por nada?
Percebi que já estávamos a entrar nos domínios do
estado da arte da situação mundial, tão frequente e caro nas nossas conversas.
- Não dei por nada, não. Pelo menos por nada capaz de
me pôr otimista. – Confessei com sinceridade.
- Percebo. Você é dos que ainda não aprenderam a ler
sinais, a topar os pormaiores… Sabem tudo sobre pormenores, sobre casos, sobre
“fait divers”. Mas escapa-se-lhes o sentido, não reparam nesses tais pormaiores
que mostram o que é importante.
Uma vez mais ficava intrigado e expectante com as
revelações do meu vizinho. Mas desta vez num nível superior. É que as
“revelações” do meu vizinho – seria talvez mais adequado chamar-lhes epifanias
– tinham geralmente uma natureza, dir-se-ia, “la palissiana”. Baseavam-se na
observação dos factos, tão pura e tão crua, que me deixavam quase sempre
desconcertado e a sentir aquele típico “como é que é não pensei nisto…” Mas, de
vez em quando, as suas revelações tinham uma feição mais premonitória, “a la
mode” nostradamiana, ou, se se quiser, ao jeito do “nosso” Bandarra.
Inevitavelmente o impacto dessas revelações causam-me sempre um efeito maior e
mais duradoiro, talvez também pelo toque apocalítico que trazem a
condimentá-las.
Estava certo que a revelação que aí vinha era desta
segunda natureza.
- Conhece aquele provérbio, “entradas de leão, saídas
de sendeiro”? - Disparou de chofre o meu vizinho. Não lhe diz nada? Não vê que
é exatamente o que se está a passar na atualidade? Há muito que não ouço tanta
gritaria, tanta ameaça. Todos os dias alguém anuncia que o fim do mundo está a
chegar. A cada momento um líder mais ameaçador surge neste ou naquele país. E
parece de facto que estão a surgir cada vez mais ameaças fatais. Mas é bom não
esquecer que os tempos mudaram: hoje é mais rentável cooperar do que fazer a
guerra. Há alturas (da guerra) – isto é sabido há milhares de anos -, em que
quem toma a iniciativa, perde… Saídas de sendeiro…
- O vizinho está a pensar no Trump, estou a ver… -
sugeri.
- Claro! No Trump e em todos os tipos que gritam
muito, que ameaçam ou que prometem muito. O Trump é paradigmático, mas nem
sequer é o pior. Ele grita por ele e por outros que estão calados, que até
podem parecer muito ajuizados, mas que realmente estão à coca de que algo
aconteça que lhes permita recuperar as suas antigas glórias, compensar as suas
fraquezas. Se ele falhar, era louco. Se ele abrir alguma porta fechada,
transgredindo, ou não, lá estarão eles prontos para aproveitar, talvez até para
apoiar. Fazem-me lembrar predadores de segunda linha, em estado de carência
grave, tipo hienas debilitadas, que sonham com um leão que lhes mate a escassa
caça que eles já não conseguem apanhar. Um leão será certamente um instrumento
que apreciam e que desejam mas que estão prontos a descartar na primeira
ocasião. É gente que gasta as últimas energias, esterilmente, a tentar repetir,
num novo estilo, tudo o que fizeram no passado. Mas que não percebe que há
passados que não têm regresso. Impérios que não retornam… Por isso um louco dá
sempre muito jeito…
Atrevi-me então a interromper o meu empolgado vizinho:
- Então acredita que esses loucos e loucuras não levem
o mundo a extremos. Que tudo não passará de encenações…
- Nos extremos, vizinho? Nos extremos já o mundo está…
Claro que as encenações e as guerras vão prosseguir mas a tendência será para
que terminem. Acredito nisso. Não porque as pessoas sejam melhores mas porque a
guerra é cada vez menos lucrativa do que a cooperação. Depois, atingimos aquele
ponto histórico que determina que sairá derrotado quem tomar a iniciativa
bélica…
- Como assim, vizinho? Como chegou a essa conclusão?
- Os sinais, vizinho… Os tais sinais. Os pormaiores… E
preciso estar atento. É preciso perceber…
E foi assim que – uma vez mais - nos despedimos. Ele
confiante, escada acima. Eu perplexo, escada abaixo.
Daniel D. Dias