segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Ser e parecer


Salazar dizia que “em política o que parece é”. E talvez tivesse razão. Acredito que entre outras justificações da sua longevidade no poder esta terá sido uma delas e com peso significativo.
A importância do parecer, da imagem, dos políticos e da política, é cada vez mais reconhecida e, hoje em dia, é objeto de estudo científico aprofundado. Proliferam organizações e profissionais nesta área – marketing de imagem, institutos de sondagens especializados, etc. – para ajudar a eleger presidentes e para os manter no poder.

Mas, por melhor que seja a maquilhagem, por mais eficaz que seja a forma de fazer passar as imagens, a dicotomia do PARECE e do É continuará a representar coisas diferentes, que podem coincidir ou não.

Creio que na génese desta preocupação com a imagem está, na maior parte das vezes, algo dúbio ou eventualmente desonesto. Afinal se a confiança nas qualidades próprias fosse absolutamente genuína porque razão haveria alguém de querer colar à sua imagem pública à imagem (empática) de outro alguém? Porque há-de alguém exibir cortes de cabelo a lembrar a princesa Diana ou os maneirismos de Nelson Mandela?

Reconheço - é uma questão antiga: "À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta". Faz falta então PARECER (-se) mais - muito mais - do aquilo que se É de facto. Parecer será mais importante que ser? Terá sido este o motivo de se atribuir o Prémio Nobel da Paz a Obama, antes mesmo de ele exercer o seu mandato?

Não sei. Tenho ideias concretas sobre o que parecem e o que são muitos dos líderes mundiais (e nacionais), da atualidade e do passado. É quase inevitável não as ter; acho que sucede o mesmo com toda a gente. Mas não vou falar delas, porque posso não ser justo em todas as apreciações – já tenho mudado de opinião acerca de tanta gente… – e, principalmente, porque receio despertar paixões, tanto inadequadas quando desnecessárias, sobre figuras públicas destacadas.

Mas convido a que observem atentamente e com objetividade a cena pública – nacional ou internacional - e que tirem conclusões. As conclusões possíveis, obviamente, pois nem sempre o que É (ou o que acabou por vir a ser) está acessível ou é claro. Verão que há de tudo: Líderes que, como a pescada, antes de o ser já o eram e que no final geraram enormes deceções; políticos que em nome dos valores da esquerda favoreceram a direita mais arrogante; direitistas que foram forçados pelas circunstâncias a “governar à esquerda” ou próximo dos seus valores.

Neste tempo estranho, de gente estranha, talvez seja útil observar os detalhes, os pormenores das maquilhagens que se usam e tentar perceber as motivações (a verdadeira face) por detrás delas. O sábio poeta Aleixo não se cansou de nos alertar para os equívocos que as imagens podem gerar:

“Sei que pareço um ladrão…
Mas há muitos que eu conheço
Que sem parecer o que são
São aquilo que eu pareço”

Daniel D. Dias

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Sinais inquietantes


Desejar uma coisa – consciente ou inconscientemente – e ao mesmo tempo o seu oposto, ou receá-la, é a essência da neurose. Pavlov mostrou como se podia produzir experimentalmente esse fenómeno. Alimentando um cão esfomeado sempre que lhe mostravam um foco de luz circular, ao fim dum tempo de consolidação do hábito, o animal reagia, salivando, visionando apenas o sinal luminoso (estímulo associado “agradável”), sem precisar da comida. Paralelamente condicionava-se o animal com outro estímulo associado mas desta feita nada agradável. Infligiam-lhe choques elétricos, sempre que era projetado um foco de luz com forma de barra retilínea em vez do círculo. Passado algum tempo já não eram precisos choques elétricos: a simples exibição desse sinal luminoso bastava para que o cão entrasse em pânico.

Os efeitos da neurose produziam-se quando o cão era submetido a um novo foco luminoso. Inclinado a 45º, o projetor gerava agora um foco luminoso oval que era percecionado ambiguamente pelo animal: insuficientemente redondo para desencadear o desejo pela comida, mas tendencialmente reto a fazer recordar o sinal aterrorizador, a oval tinha algo dos dois estímulos opostos (satisfação e sofrimento) e gerava inquietação e desconfiança. Mas, continuando a reduzir o ângulo do projetor, tornando a oval cada vez estreita – cada vez mais parecida com a barra retilínea associada ao sofrimento -, o cão atingia o paroxismo: desatava a uivar, a urinar, a ladrar, descontroladamente, tentando fugir. Podiam então apresentar-lhe alimento que não comia, apesar de estar esfomeado. Assim se manifestavam os sintomas duma crise neurótica artificialmente induzida.


As sociedades humanas são, seguramente, estruturas muito mais complexas do que as dos cérebros dos cães de Pavlov mas, ainda assim, parecem também comportar-se neuroticamente. As ideologias dominantes – que se manifestam, entre outras coisas, na educação, nas tradições, na comunicação - habituaram as pessoas a determinadas expectativas “agradáveis”, com o objetivo de obter delas cidadãos obedientes e colaborantes.

Mas as governações, em consequência dos jogos de poder e dos interesses egoístas que persistentemente lhes subjazem, acabam repetidamente por mergulhar em contradições, não correspondendo àquilo que prometem, defraudando expectativas. Nos períodos “bons”, os governos lograrão resolver ou atenuar as tensões assim geradas: cedendo parcialmente às pressões existentes, recorrendo a ações demagógicas. Mas também recorrendo a repressões controladas combinadas com medidas “paliativas”. Estas ações poderão acalmar temporariamente ânimos sociais exaltados evitando deflagrar conflitos latentes, ou diferir os problemas para alturas mais favoráveis.

Nos períodos “maus”, nas crises mais agudas, as manifestações neuróticas surgem reforçadas. Os medos, das repressões violentas, da miséria social extrema, o terror da ruína e da falência, renascem no “inconsciente coletivo”. É o tempo de surgirem entre as grandes massas, os “duces”, os falsos messias, que anunciam soluções milagrosas e defendem ideologias alienantes. Então, os poderes exercidos com regras são postos em causa e as pessoas tendem a apreciar mais a força do que a razão. Guerras surgem em geral no corolário destas situações.

Pergunto-me: Será que vivemos num tempo destes? Não tenho a certeza disso e espero bem que não. Todavia há por todo lado sinais inquietantes que me fazem ter vontade de apelar ao Dr. Freud e de recolher-me num confortável divã…

Daniel D. Dias

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Seguindo maiorais




Grande parte das pessoas leva longe demais a sua passividade e não quer – ou não consegue - perceber esse facto. Procura culpados e quase sempre consegue encontrá-los. Claro que existem culpados porém eles crescem, progridem, fortalecem-se, com a cumplicidade, com o beneplácito, ou com a indiferença da maior parte de nós.

Quando as situações se agudizam as pessoas tendem a optar pelas soluções mágicas por vezes muito extremas. Os atuais ideólogos que surgem pelo mundo e a que chamam “populistas” – gente ridícula geralmente protofascista – fazem parte dessas opções mágicas. É gente extrovertida, descarada, que afirma e promete coisas perigosas, até mesmo absurdas. As pessoas, porém, estranhamente, parecem apreciá-la e seguem-na. Creio que o fazem para aliviar-se, porque estão revoltadas ou desesperadas, mas talvez também, para não se comprometerem com a ação cívica. O grande público, não conhece ou esquece com facilidade as lições da história. E em situações extremas, é sempre mais fácil fazer de carneiro e seguir maiorais, do que enfrentar desafios.

Creio que na base de tudo isto está a desigualdade social, que é bem real, mas que é percecionada de forma idealizada. Tal facto resulta da ignorância política que hoje é cultivada deliberadamente, com denodo e até com suporte científico. O mundo percecionado pelas pessoas é irrealista, quase imaterial, porém a realidade, o dia-a-dia, as matérias-primas base - dos carros, das casas, dos aparelhos, a energia, as estradas, os alimentos - tudo isso e muito mais que não está à vista, não é virtual, continua a ser bem real e analógico, bem pesado e opaco, a esgotar os recursos da terra e, claro está, a dividir-nos. As pessoas vivem uma realidade diferente daquela que percecionam. Sentem, sofrem com isso, mas parece não interessar-se em entender a génese dos problemas. Conformam-se com explicações simplistas. É por isso que personagens sombrios - Trumps, Le Pens e outros que tais - podem proliferar e chegar ao poder com surpreendente facilidade.

Este mundo "faz de conta", que trata como mercadoria, amor, alimento, saúde, fraternidade, simula ser humanista, promete soluções, mas não consegue por as pessoas a viver melhor. A “peste emocional” - de que falava W.Reich - continua a ser uma tremenda realidade e a envenenar a nossa existência.
 
 
Daniel D. Dias

terça-feira, 9 de agosto de 2016

"Pax americana" e cozidinho


Nada tenho contra os EUA. Sou grande admirador de muitos dos seus valores, valores que modernizaram mundo: do livre empreendedorismo, à liberdade criativa; do automóvel, à película fotográfica; da eletrificação, ao Macintosh; da vacina anti poliomielite à conquista espacial; do jazz à cultura pop; de Walt Whitman a Ernest Hemingway, balança toda essa minha admiração sincera que não se esgota aqui. Mas não aprecio a sua deriva imperial das últimas décadas, exportadora de violência militar e económica, de invasões a países soberanos, de suporte ativo a regimes retrógrados e desumanos, de difusão massiva de ideologias promotoras do egoísmo exacerbado e doentio, da apologia e banalização da violência, da subordinação da natureza e dos direitos humanos dos povos – incluído do seu próprio povo – aos interesses económicos dos grupos monopolistas que controlam o poder.

A dominância deste país tem criado raízes em quase todos os países do mundo. Sobretudo a ideológica, ou seja, a forma de pensar que subjaze a qualquer cultura. A “american way of life”, fortemente influenciada pelo condutismo de Watson, e, em especial, de Skinner, projetou-se de forma avassaladora por todo o mundo, gerando uma tal “americana pax”, recheada de contradições, de conflitos militares, de golpes de estado, de muito consumo supérfluo, de muita degradação ambiental, e de uma paz precária, ilusória ou muito condicionada.

Tudo isto foi possível graças à dominância que os EUA granjearam nos “media” mundiais. Hollywood foi naturalmente um dos seus pilares primordiais. Mas o controle que dispõem atualmente, direto e indireto, da internet, das centrais de comunicação e notícias, dos conglomerados de entretenimento e das redes por cabo, das centrais de distribuição dos conteúdos multimédia (filmes, séries, documentários), dos grandes grupos de publicidade, permite-lhes promover guerras “em diferido” – por exemplo as chamadas revoluções coloridas, as primaveras árabes -, tudo com menor necessidade de intervir diretamente no terreno, sobretudo com meios humanos. O armamento, o apoio mercenário, obviamente, também faz parte, mas segue depois.

Lembro-me que nos finais dos anos oitenta se discutia a possibilidade de liberalizar as rádios e as televisões em Portugal. Este fenómeno aconteceu em todo o mundo e em Portugal teve grande relevância. Depois de imensa controvérsia dominou a ideia que mais convinha à “pax americana”: acabar com a balbúrdia comunicativa que proliferava – a chamada “pirataria” - e entregar os “media” a grupos “civilizados” ligados a grandes interesses. Nasceu a SIC, a TVI… Na altura pagava-se uma taxa à TV pública, que era considerada um escândalo. Eram apenas alguns Euros por ano, mas geraram grandes protestos. Se havia publicidade paga, porque havia de haver taxa? Eu também protestei… Os novos grupos (e a nova orientação do setor) prometeram – a pretexto da liberalização – acabar com essas taxas. E assim foi, de princípio. Mas a situação aos poucos mudou radicalmente. A introdução da TV por cabo passou a ser paga, sem qualquer oposição. Depois começou a veicular publicidade (paga) na própria programação, apesar dos utentes pagarem um preço elevado pelo serviço. Mas nunca, até hoje, ouvi ninguém esboçar um esboço de revolta perante esta situação. Onde terá ficado essa contestação às taxas?

Mas o pior – para mim, bem entendido – é que estes serviços servidos ao domicílio e pagos principescamente, só veiculam a “pax americana”. Abro a TV (por cabo, claro) e só assisto à versão americana do mundo. Mais de 90% - não exagero - dos filmes e séries apresentados são norte americanos ou similares. Até mesmo nos canais ditos “Premium” (pagos à parte) só muito raramente e numa percentagem mínima se mostram filmes europeus ou de outras proveniências não americanas. Onde foi parar o “free cinema” inglês, a “nouvelle vague” francesa, o novo cinema alemão, o exaltante cinema italiano? Onde param os refrescantes cinemas, japonês, russo, canadiano, húngaro, jugoslavo? Nada sobrou? Eclipsaram-se? Ah: Os efeitos especiais massivos, as tecnologias de ponta, superaram tudo... É isso.

Outro aspeto pérfido deste predomínio ideológico da “pax americana” pode apreciar-se na singular coincidência temática dos filmes que nos são apresentados. Quando há qualquer acontecimento que aparenta fragilizar alguma faceta da “pax americana”, lá chovem os filmes que exaltam o papel dos americanos no mundo, seja na 2ª Guerra Mundial, seja na luta anti terrorista, seja nas diatribes da guerra fria, seja no universo dos super heróis… Será isto por acaso? Serei apenas eu (com a minha eventual má vontade) a reparar nisto?

O papel destes “media” controlados ajudam a deturpar a realidade e a também a história. Estudos mostram que a perceção de quem derrotou o nazismo alterou-se nas últimas décadas, eclipsando os verdadeiros vencedores. Muitos acontecimentos cruciais no mundo são, pura e simplesmente, suprimidos da agenda mediática. Pelo contrário incidentes pouco significativos, são empolados – quando não mesmo inventados – para apresentar relevância mundial e influenciar a opinião pública num ou noutro sentido. Mas o pior, para mim, é que nos aculturam, nos minam as raízes endémicas, sem nos acrescentar valor ou acrescentando muito pouco. Creio que para muitos de nós, certos atores americanos são mais familiares que os nossos próprios atores. No nosso cérebro estão eventualmente mais enraizadas as imagens dos lares, das urbes, das crises, das alegrias americanas, que as que ocorrem no nosso próprio seio. A globalização não é isto, não pode ser isto.

O hamburger e a salsicha, ao que parece, superam ou tendem a superar, as nossas comidas tradicionais. Não tenho nada contra salsichas, mas chateio-me com esse facto. Gosto de salsichas, gosto de hamburgers, mas prefiro um cozidinho. E não tenho nada contra a globalização… nem contra americanos.

Daniel D. Dias

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Prevenções estivais -3



No verão o universo aquático – o paralelo e intrigante mundo dos peixes – é mais subversivo. Quer mergulhemos nas águas ou nas cervejarias, os bichos aquáticos atrairão sempre o nosso interesse, e, há sempre o risco, de se passar de predador a isco e de sermos engolidos por umas dessa bocas gigantes que escondem em lugares inesperados ou recônditos.

Fica então o conselho: antes de te entregares a um pescado observa primeiro se o fazes na qualidade de isco ou de predador. De cabeça fresca, observa o habitat do bicho e o estado das águas. Sonda, engoda, lê os menus com atenção. Depois decide. E, se for caso disso, mergulha. Mas tem sempre uma bóia debaixo de olho.


Daniel D. Dias

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Prevenções estivais -2


No verão, o pai/mãe Sol é generoso: retoca as nossas cores, põe-nos morenos, atraentes. Mas as noites, a cidade, a vida pouco cuidada, embaçam a nossa pele, empalidecem-nos. E quando o encanto decai, quem se atraiu por nós em veranis entusiasmos, continuará assim atraído? Para prevenir desilusões sugiro que nos mostremos, intermitentemente, “feios”, desencantadores, pois, como é sabido, não há maquilhagem que sempre dure e os amantes “vero, vero”, devem ser aptos a resistir à face oculta da beleza... Todavia, quem ensaiar esse teste, deve fazê-lo genuinamente, sem batota; o estilo “faz de conta” - “négligé” - nunca deve ser usado pois os resultados são incertos.
Depois, se ninguém acusar mudanças ou hesitar, se o encanto persistir, as perspectivas – embora nada o garanta - serão mais animadoras.
   

Daniel D. Dias

Prevenções estivais -1



Cuidado: Os perfumes podem gerar melindrosos equívocos. Quem não gosta do nosso cheiro característico é muito provável que não goste mesmo de nós. Não será por isso que se diz, "não me cheira", para designar algo de que não gostamos?

Daniel D. Dias


quinta-feira, 21 de julho de 2016

Alfa e ómega

Sei que as palavras foram o princípio.

Antes das palavras não havia tempo
as manhãs eram sempre claras e eternas
as movimentadas tardes jamais terminavam
as noites, essas eram tremendamente escuras e infinitas
e não havia fronteiras nessa geografia sem horizonte

A génese das primeiras palavras não sei:
terão sido pedaços do mundo que quis reter?
sensações que recusei partilhar?
Mas como adorei esses mágicos rincões
indeléveis, que ainda hoje moldam a minha natureza!

Só muito mais tarde - talvez demasiado tarde
quando vislumbrei quanta areia perdia
por entre os dedos das mãos cerradas
as minhas palavras se tornaram gritos, apelos
instrumentos de busca de sentido, e algumas delas foram de amor

E descobri que as palavras, mesmo as melhores palavras
foram sempre o ectoplasma da vida
simulacros das coisas reais que dispensam nomes
que construíram o vácuo edifício da existência
no mundo cada vez mais ficcionado que partilho…

Agora sei que as palavras são também o fim


Daniel D. Dias

sábado, 16 de julho de 2016

Entardecer



A brisa da tarde cessou
deu lugar ao cálido entardecer
tempo de andorinhas tracejando o céu
farrapos da infância pairando dispersos

a mente, sem se anunciar, observa
nada busca
governa as palavras como pode


Daniel D. Dias

domingo, 15 de maio de 2016

Temer (e) o preço das desigualdades


A clássica técnica policial de investigar a autoria dum crime começando por determinar, antes de mais, quem mais lucra com ele, é exemplar no caso do Brasil e, duma forma geral, em toda a América Latina e países Caribenhos. Que diabo, não são demasiadas coincidências e todas a apontar para o mesmo lado? Acho que não é preciso fazer um grande esforço intelectual para perceber quem lucra com a eventual derrocada dos governos que levaram ou levam a efeito políticas progressistas nos últimos quinze/ vinte anos. Quem lucra com a descida dos preços do petróleo, quem ganha com a desregulação da economia e das instituições?
O regresso às ”virtudes” do passado sempre foi uma constante quando as classes poderosas se sentem ameaçadas nos seus privilégios. Os promotores destas ideias, houve tempo, em que o tempo estava invariavelmente do seu lado. Mas creio que, atualmente, as coisas não são bem assim. Os retrocessos programados exigem hoje em dia, gestões e manutenções dispendiosas, impossíveis de suportar por muito tempo. E as lealdades entre cavalheiros de indústria também já conheceram melhores dias.
Estes movimentos fascistas ou fascizantes, que se vão implementando um pouco por todo o lado - ostensiva ou sub-repticiamente -, estão por isso condenados ao fracasso no curto ou no médio prazo. Creio que, na essência da economia mundial, há algo novo ainda não assumido, mas cada vez mais evidente: Sai cada vez mais caro gerar ou manter desigualdades do que procurar acabar com elas.
Talvez a praxis económica ainda esteja apegada a inércias do passado. As mudanças - como se sabe – não são lineares, pesam muito e são difíceis. Mas a caminhada na direção da igualdade social – estou convicto - é irreversível e imparável. Temer e o que ele representa é sem dúvida de temer. Mas Dilma, e o que ela representa, talvez ainda tenham uma palavra a dizer.
Daniel D. Dias

domingo, 8 de maio de 2016

A ameaça fascista



O fascismo é a expressão mais extrema e acabada da luta de classes. Este fenómeno está sempre latente, em menor ou menor grau, nas sociedade divididas por interesses antagónicos como é o caso de todas as conhecemos. Infelizmente décadas de progresso tecnológico e científico não lograram implantar os dois factores  capazes de travar esta doença social: a distribuição mais equitativa da riqueza gerada na sociedade, (facto que se manifesta vulgarmente na expansão da chamada classe média – as sociedades mais evoluídas têm uma classe média esmagadoramente maioritária), e a universalidade da educação pública de qualidade. Estes dois factores estão interligados e são interdependentes. O pecado original da nossa sociedade - que não se cansa de apelar à necessidade de  sermos mais competitivos – é não cuidar de assegurar - À PARTIDA - as condições básicas para concretizar esse potencial. Sem “paz, pão, educação, habitação” e  estabilidade garantidos, pelo menos ATÉ À MAIORIDADE A TODOS OS CIDADÃOS – e não apenas a alguns -, toda a competividade exibida não passa dum jogo viciado. Os mais aptos que acabam por ter sucesso, ou são fenómenos da natureza, ou tiveram algum tipo de vantagens que lhes permitiu ir mais longe. Mas a sociedade no seu todo, perde e perde muito.

O fascismo, nas suas múltiplas manifestações, (não se espere que os fascistas do seculo XXI se apresentem com indumentárias e discursos mussolinianos), resulta sempre dum excesso de pressão no equilíbrio social. É comum o fenómeno começar por uma reação excessiva das classes privilegiadas que sentem ameaçados os seus privilégios: Ou porque se lhes afigura que as classes subalternas lhe parecem pôr em causa os seus interesses, ou porque temem a ruina resultante duma concorrência descontrolada.  Mas a receita completa envolve os “media” (que elas próprias controlam)  e outras organizações de massas – certos partidos, organizações “religiosas” - que espalham o pânico e logram mesmo associar a este descontentamento – muitas vezes artificialmente empolado e induzido – as classes atingidas pela penúria: desempregados, gente forçada à marginalidade, revoltados e descontentes.

É porém  importante  que se sublinhe que o fascismo só é bem sucedido quando a ignorância política é dominante, e o povo – na sua grande massa – se apresenta desmobilizado, ou, ainda pior, dividido. É bom não esquecer que hoje em dia prolifera uma indústria do entretenimento e uma máquina de moldar opiniões, baseada na diversão e nos “media”…

A III Guerra Mundial – como (bem) dizia o Papa Francisco, há muito está em marcha. Ela ocorre em muitos pontos do mundo - exatamente neste momento -, mas parece que só uma pequena parte da humanidade entende, e se preocupa com o que se está a passar. Esta apatia ou mesmo indiferença é muito preocupante. Parece que ninguém percebe as ligações que existem entre determinados interesses – e políticas - ocidentais e as terríveis guerras que estão a ser incrementadas no Médio Oriente, na África e em certas zonas da Europa. O Estado Islâmico é apenas uma manifestação desse fascismo que avança… e que tem aliados. Alguns que até dizem combate-lo…

Mas nas Américas o fascismo também ameaça. No Sul – sob pretextos legalistas – uma a uma todas as democracias progressistas, as primeiras bem sucedidas em 500 anos! - estão sob séria ameaça. O desemprego, a miséria e a violência já são visíveis no horizonte. E o grande vizinho do norte, agora em maré de eleições – mostra uma vez mais o seu perfil tenebroso.

Que fazer?  Creio, antes de mais, que é preciso tomar consciência do que se está a passar. É preciso passar a observar com muita atenção e criticamente, toda a informação que vai chegando. Construindo uma visão clara, cada um de nós pode ajudar a esclarecer terceiras pessoas, especialmente aquelas que perdem muito com este clima de retrocesso. É também importante não reagir apenas com estados de ânimo. As emoções podem ser reações plenamente justificadas mas toldam frequentemente os raciocínio serenos, os que geram as decisões mais acertadas.

As ameaças são muitas mas creio que as forças da liberdade e do progresso acabarão por se tornar dominantes. No entanto só uma maioria de consciências cívicas, clarividentes e convictas,  poderá obviar a muito sofrimento inútil.   Faço votos para que as pessoas de boa vontade, de espírito livre, saudável e abnegado, tenham ânimo que baste para travar esta luta.


Daniel D. Dias


domingo, 1 de maio de 2016

Mãe

Mãe
é outra coisa
é outro estado da natureza

Mãe é mais que mulher
é mais que gente
é o princípio e o fim de tudo
é um perfume indefinido
uma humidade refrescante
que se cola ao corpo
que trazemos sob a pele
por toda a vida
mesmo sem darmos por isso

Secamos, envelhecemos
e essa água é a mãe que se vai
que se volatiza,
talvez no seu último esforço,
no seu último embalo
dum repouso mais profundo



Como sinto sede dessa tua água, mãe!



Daniel D. Dias

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Coisas do meu vizinho – 3 Eleições, esquerda, ideologia e bom senso



O meu vizinho afirma com frequência que “a esquerda política não é o que mostra ser mas o que de facto é”.

Os nossos encontros fugazes nem sempre permitem aprofundar estas questões. Mas agora com as presidenciais, surgiu uma oportunidade para lhe perguntar o que queria dizer com essa estranha afirmação.

- Não entende? – Respondeu-me aparentemente surpreendido. Então não vê que esquerda e direita são coisas diferentes dependendo do ponto de vista? Os nomes pouco significam e podem ser apenas uma camuflagem. Veja o caso do partido NAZI na Alemanha de Hitler. A sigla completa, NSDAP, em alemão, (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei) é composta pelas palavras “Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães”. Conhece alguma coisa que pareça mais de esquerda? “Socialista e dos trabalhadores” e no entanto hoje ninguém duvida que essa organização não só era de direita mas de “extrema direita”, anti trabalhadores e anti socialista. Outro exemplo mais recente: os "Khmers vermelhos" ( militantes do Partido Comunista do Camboja que estabeleceu neste país asiático o chamado “Kampuchea Democrático” - Camboja Democrático). Eram “vermelhos”, democráticos, comunistas (ideologia que se identifica sempre com valores de esquerda), e no entanto perseguiram e mataram milhões de pessoas, em nome do povo… E há muitos outros exemplos.

Pausa. Olhou-me bem nos olhos talvez para ver se o assunto me interessava. E prosseguiu, num claro esforço pedagógico.
-Vamos lá a ver: Todos os partidos, organizações ou personalidades que chegam ao poder, fazem-no utilizando argumentos de esquerda, ou pelo menos, tentando agradar ao povo, que, por natureza, é a própria essência da esquerda. Por isso, para mim, é de esquerda o que é DE FACTO feito com intenção de favorecer o bem do povo – entenda-se, da grande maioria do povo e, sobretudo, daquela parte que mais precisa. Os nomes, as atitudes, as declarações, podem querer dizer alguma coisa, ou muito pouco, é isso que importa sempre ter presente. Claro, há o histórico, de indícios, de práticas, que, bem analisado, raramente engana. Mas esse histórico pode ser apagado, manipulado, deturpado, disfarçado, de forma a parecer outra coisa ou até o seu contrário. Estamos no domínio da ideologia, que engloba a cultura dominante, os hábitos, a arte, a educação e a comunicação. Entende?

Acenei que sim.

- O pobre vive a vida de pobre mas transporta na cabeça a mentalidade da classe dominante, dos privilegiados. Por isso os pobres – mesmo em democracia – elegem quase sempre os seus inimigos de classe. As organizações de esquerda lidam mal com esta realidade. Estão excessivamente preocupadas com lideranças, comunicam mal, são pouco práticas nas suas ações, preocupam-se mais com teorias do que com factos. Depois, não se unem, acenam com miragens e nem sempre cumprem o que prometem. Muitos ficam admirados com este fenómeno (do excesso de abstenção, dos pobres elegerem os ricos, do povo colocar a direita no poder) mas tudo isto, afinal, nada tem a ver com a “estupidez” do povo. Quanto muito tem a ver com a sua ignorância. Sobretudo com a sua ignorância política. Mas no cômputo final a verdade resume-se a isto: quem domina a comunicação e a ideologia dominante – que está presente em tudo: nas distrações, na cultura, nas tradições, nos filmes, nas telenovelas, no futebol – domina tudo… Quem tem dinheiro tem vantagem e a esquerda está em desvantagem porque, habitualmente, abjura, excomunga as técnicas de ganhar dinheiro, em vez de as dominar, de tirar partido delas...

Aqui o meu vizinho fez uma nova pausa, talvez para ver como estava a reagir. Como permaneci impassivo, prosseguiu.

- Percebe agora porque Marcelo foi eleito? – Perguntou com uma ponta de acinte.

Estava atordoado com o seu discurso compacto e assenti sem grande convicção. Pensava noutras razões: no abstencionismo, na falta de argumentos da direita (mas que mesmo assim ganhava…), e também nas divisões e da má campanha da esquerda… Mas o meu vizinho avançava noutra direção.

- Sabe: as pessoas receiam a mudança. Preferem ter uma vida medíocre a mudar. Sabe-se lá se a mudança não será ainda para pior… É o que sentem, é uma reação ancestral. Por isso “o sistema”, o que consideram “normal”, é que domina. As pessoas só mudam em duas circunstâncias: em desespero de causa – quando já não têm nada a perder e são impelidos a lutar (ou a fugir – veja o caso dos refugiados), ou por rutura cultural com o sistema vigente. Se as pessoas perderem o medo de pensar, se deixarem de se refugiar no devaneio, na fuga à realidade com diversões de todos os tipos, se se divertirem, a pensar e com outras diversões que são aquelas que se centram na realidade, que tiram partido dela, que procuram conhecê-la, então podem mudar e escolher outro modo de vida, mais humano, mais sustentável, mais seguro. Sem esforço de maior e até sendo mais felizes.

Pareceu-me tudo isso uma enorme miragem.

- Então não há esperança, não é? - Balbuciei, sinceramente desanimado.

- Há, pois. Pelo menos alguma. Quando há mais gente a divertir-se, correndo - a pé, de bicicleta, de para-pente, de skate –, mais gente interessada em conhecer o mundo real, divertindo-se a estudar, a compreender a realidade, que lida melhor com a liberdade, com a simplicidade, que não se interessa apenas em acumular riquezas, que gosta daquilo que faz e trabalha com gosto… Há esperança, pois. O bom senso demora mas quase sempre chega.

E, depois duma curta pausa, rematou a conversa com esta intranquilizadora frase:

- O problema, nesta altura, é saber se o bom senso chegará a tempo…

Daniel D. Dias