A Grande
História segue o seu intricado curso que muitos julgam resultar de caprichos
celestiais ou da ação de homens predestinados. Mas trata-se duma ilusão. Uma
análise aprofundada – objetiva, desapaixonada - evidencia que há um processo
histórico, um conjunto de leis universais, inelutável, que subjaze na sua
génese. Aníbal se lograsse derrubar Roma talvez a civilização ocidental tivesse
hoje outros contornos, mas certamente o modelo de produção que hoje vigora
seria o mesmo ou muito semelhante. Sem a Revolução Francesa e o Iluminismo, os
Direitos do Homem poderiam ter outra redação mas certamente há muito teriam
surgido e a sua essência seria idêntica. Os acontecimentos determinantes da
história ocorrem porque há condições objetivas (e subjetivas) para que ocorram
e não o contrário. Por isso, um modelo produtivo só dá lugar a outro quando
esgota – por completo - o seu potencial; uma inovação crucial só ocorre quando
estão maduras as condições para que tal aconteça. É a dialética das coisas.
Tomar consciência
desta realidade levou num passado recente a que muita gente esclarecida,
humanista, bem-intencionada, preconizasse queimar etapas da história. Já que se
conhecia, finalmente, a mecânica da evolução histórica, porque não evitar fases
intermédias, difíceis, dolorosas? Mas os ensaios nesta direção deram quase
sempre mau resultado e reforçaram as intenções daqueles que permanecem apegados
aos seus interesses egoístas. Ou seja: em vez de abreviarem o caminho do
progresso, contribuíram para retardá-lo.
Talvez este
fenómeno - de acordo com as premissas desse mesmo processo histórico - não
pudesse ser evitado. Talvez. Frantz Fanon (1925-1961), filósofo e psiquiatra
francês de origem africana, mostrou no seu livro “Os condenados da terra”
(1961) que, às descolonizações tão ansiadas após a II Guerra Mundial, não se
seguiria, de imediato, a instauração de regimes pacíficos e progressistas. Pelo
contrário, mostrou, não sem profundo desagrado, que enquanto não se formasse
nos países recém-independentes, nova estratificação social semelhante à das
potências colonizadoras – novas burguesias, novas classes burocráticas -, novas
lutas, novos conflitos interclassistas, haveriam de ressurgir, e só depois de
superada essa etapa, novo sistema social, mais justo, mais progressista, seria
então viável.
As
revelações de Fanon, rigorosamente fundamentas, constituiram na altura um balde
de água fria nos sonhos e aspirações dos militantes anticolonialistas. Mas
estes persistiram na sua luta, sem que tivessem obviado queimar etapas, como é
evidente hoje em dia. Porém tinham de fazê-lo porque é mesmo assim que se
processa a dura aprendizagem da história. Lutar pelo progresso faz parte do
processo histórico.
Mas, se não
é garantido queimar etapas, está comprovado que é possível retardá-las. O
mundo, desde as comunidades primitivas, desde que há história, sempre esteve
dividido entre classes com interesses opostos. Obviamente os que estão na mó de
cima opõem-se à mudança, a qualquer coisa que ponha, ou pareça pôr, em causa os
seus privilégios. E todos pretextos são bons para atingir esse objetivo. O
século transato assistiu ao surgimento de regimes retrógrados que deram origem
às guerras mais destruidoras de sempre, e mesmo o novo século continua na mesma
senda apesar dos tremendos progressos científicos e técnicos que surgiram, só
por si, capazes de garantir à humanidade um bem-estar sem paralelo.
Pergunto-me:
Não será um desses pretextos esta vaga dita neoliberal, que avassala a atual
economia mundial? Será este modelo económico baseado exclusivamente no lucro
fiduciário – modelo que tudo avalia segundo essa ótica, que exige absurdos
crescimentos (de dois dígitos!) às empresas, aos produtores, para que
subsistam, - algo inevitável, algo indispensável ao progresso da humanidade? Ou
não será antes uma forma, dir-se-ia desesperada, de retardar uma mudança do
paradigma económico, um fim de ciclo, porque o modelo produtivo em que se
baseia já deu tudo o que tinha a dar?
O mundo
atual está repleto de exemplos de retrocessos evitáveis, consequência, direta
ou indireta, deste modelo obsoleto. A crise dos refugiados, por exemplo, tem um
nexo evidente com as políticas das potências ocidentais que destruíram vários
países sob o pretexto de ameaças inexistentes a esconder interesses económicos
tão criminosos quanto estúpidos. Muito do discutível sucesso dos “países
civilizados” assenta na continuada exploração, sem regras e sem escrúpulos, do
mundo subdesenvolvido, e da aliança que mantém com as classes que exercem o
poder nessas regiões. Investir nas forças do progresso nesses países, combater
as assimetrias regionais, praticar uma cooperação genuína, não seria uma forma
de obviar às desigualdades chocantes a que assistimos, com o seu corolário de
misérias, de guerras fratricidas, de crimes abomináveis? Mas o poder atual
prefere investir os seus recursos em ações repressivas, em exércitos de
mercenários, na desinformação, na destruição ambiental…
Os sinais
que surgem no mundo, se não estou enganado, parecem revelar um final de ciclo,
uma mudança de paradigma, um novo modelo socioeconómico que se avizinha, e com
ele, uma cultura nova. Tempos decisivos estes que vivemos: retrocesso e mudança
confrontam-se uma vez mais. Quero acreditar que a mudança se imporá, sem
sobressaltos de maior, sem pôr em risco a sobrevivência da humanidade. É a
minha suprema aspiração.
Apesar de
tudo estou otimista. Já é tempo da humanidade sair da sombra e gozar a Luz. Luz
genuína é o que mais falta, pois, com mais Luz, o demais virá por acréscimo.
Daniel D. Dias