Um amigo meu oriundo duma família muito católica contava-me que quando era criança, padecia quando era obrigado a frequentar os rituais da igreja. Tudo o incomodava: o cheiro do incenso, a liturgia monótona, a dureza dos bancos… Mas o pior de tudo era não sentir qualquer emoção, não ter fé. Um dia ganhou coragem e confessou à avó que a missa não lhe dizia nada, que não sentia uma pontinha de fé. A avó, compreensiva, confessou-lhe que quando era criança também lhe acontecera o mesmo e que demorou muito tempo a ganhar fé. E aconselhou-o: “Filho não te preocupes. Continua a ir à missa, mesmo que não percebas nada. Tenta fingir que percebes e evita impacientar-te. Vais ver que aos poucos começas a acreditar e a ter fé”.
Ora é justamente o que agora ocorre. Com a preciosa ajuda da ideologia dominante, veiculada pelos“media” – que nos distrai, que nos baralha, que nos torna pensadores marginais, que nos enche de dúvidas -, vamo-nos amansando, deixando crescer a lã e habituando ao redil que há muito está preparado. Há quem nos vá exacerbando as emoções, a indignação, para que fiquemos com a ilusão de que estamos mais fortes, de que o “tal dia” não tardará. Faz parte do processo. Também eles acham que o mais importante é ter fé, neste caso, a fé numa vitória que não escapará cometamos ou não disparates...
Tudo então parece resumir-se à fé. A racionalidade neste tempo da ciência é quase um luxo. Talvez por isso o papa tenha escolhido agora visitar o Brasil, o maior país da América do Sul, região onde ocorrem atualmente as mais significativas e profundas mudanças sociais do globo. Este papa faz-me lembrar o seu antecessor João Paulo II, o primeiro papa que veio do leste. Carismático, simples, elogiado por todos, crentes e não crentes, em três tempos suprimiu a “teologia da libertação” que proliferava sobretudo pelas américas e contribuiu decisivamente, talvez tanto como Thatcher ou Reagan, para o desmoronar do “bloco de leste”. E fê-lo, não porque esse bloco fosse uma falsidade ou uma perversão duma ideia, mas justamente porque se receava que fosse algo “mesmo” sério, libertador dos povos… Esse papa - idolatrado a tal ponto que já faz milagres e não tarda tem estátuas nas igrejas -, tal com o Francisco I, logo que surgiu também foi de imediato objeto de culto por todos os “media”.
Francisco I é simples, modesto, “não tem ouro nem prata para oferecer” (disse ele hoje), e as Fátimas da nossa comunicação social ficam banzadas, embevecidas, com tamanha modéstia. (Eu sou ainda mais modesto que Francisco I: Não tenho ouro nem prata, nem rendimentos, e nem sequer uso roupas esquisitas que me distingam dos outros. E no entanto ninguém repara em mim, ninguém se me dirige embevecido e me enaltece, ou me convida para acontecimentos especiais. Mas quem sou eu? Mas sei de muita gente, bem mais modesta do que eu, com virtudes notáveis, que fez obra que o papa nunca fez nem fará, que vive – ou viveu - no mais absoluto anonimato). Que seriam estes papas sem o apoio desta prestimosa comunicação social?
Dirão: é a fé. E pronto o assunto fica arrumado. Mas continuo a não entender porque foi o papa ao Brasil. Será de fé que o Brasil está carenciado? O Vaticano não tinha assunto mais urgente para tratar? Ou será que Francisco está a imitar a obra do seu antecessor João Paulo II? Espero que não.
Seguir, manter a rotina, insistir no discurso, bater até à exaustão a liturgia, sem grandes preocupações de racionalidade ou coerência, é “o que faz falta”. A fé, a disponibilidade para aceitar tudo sem discussão, o trabalho do pastor que ensina o rebanho a obedecer e a aceitar o redil, pacificamente e de boa vontade, virá com o tempo.
Esta é a lição de Cavaco, também ele um homem de fé. Os nossos comentadores e jornalistas, como bons acólitos, já estão disponíveis para achar que o homem tem virtudes, já lhe adivinham sabedorias nas suas incongruências mais abstrusas. Tudo acabará por bater certo, é a mensagem implícita em todos os discursos. E talvez bata. Pode bem ser que a “ordem cósmica” que comanda os nossos destinos, tenha epicentro nalguma gruta de Boliqueime…
Ninguém consegue manter-se em bicos dos pés por muito tempo, nem gritar dias a fio. Mesmo as mais tenebrosas tempestades têm um fim. Por isso cultivar a fé é tão importante para o “status quo”. Não altera o destino mas adapta-nos às circunstâncias, ajuda-nos a aceitar a mais miserável mediocridade. Daqui a dois anos alguém se lembra? O redil está pronto e há novos maiorais…
Daniel D. Dias