quarta-feira, 22 de outubro de 2014

“Inter somnia insomnia”, de Mário Cabrita Gil

A arte é um fenómeno perene que se crê* exclusivamente humano. Perene porque – quando genuíno - é a única manifestação da criatividade que não caduca, que viabiliza sempre novas leituras e interpretações. Que função tem a arte? É assunto tão complexo e vasto, que, mesmo que tal fosse possível, não caberia aqui abordar. Poder-se-á adiantar, em todo o caso, algo que aparenta obter um consenso generalizado: a arte, nas suas múltiplas manifestações, é uma forma do ser humano obter adequação ao mundo que o rodeia por via duma espécie de apropriação mágica ou, talvez, de sublimação. Através da arte o ser humano interioriza os fenómenos, a realidade objetiva e subjetiva que o envolve, converte-os em coisa sua, apropria-se deles. Depois, conforma-se, revolta-se, utiliza a arte como mimetismo social ou tranquilizante, converte-a em signo de status, forma de identificação. Mas tudo isso é já questão do foro sociológico, político ou psicológico. Já pouco importa. Os autorretratos que Mário Cabrita Gil intitulou de “inter somnia insomnia”, que estão agora em exposição**, sugeriram a presente reflexão. Que leva alguém a fotografar-se, e depois a manipular as fotos produzidas, e depois ainda a reproduzi-las em grandes dimensões, depois de ter sido submetido a um exame médico destinado a detetar anomalias no sono? A hipótese que defendo é que MCG quis, antes de mais, livrar-se dum incómodo, assimilando-o. Primeiro talvez, trivializando-o, remetendo-o para as gavetas duma memória seletiva, treinada, que quase todos os fotógrafos cultivam. Mas logo assumindo-a, dando-lhe um relevo que à partida não merecia ou que o artista não lhe queria atribuir. Foi por isso necessário transformar a memória-foto em memória-objeto, ou, melhor dizendo, em objeto-arte. É assim que a foto original se transmuta submetida a uma máscara obsessiva de padrões construídos a partir da própria imagem. Redundância óbvia – uma característica típica de toda a arte -, levada a um extremo que “anula” a foto original com o recurso… à própria foto. Sublimação pura. Os quadros – acho melhor assim chamar-lhes - que Mário Cabrita Gil apresenta nesta exposição, são vários, mas não muitos. Em rigor poderiam ser apenas um. Fazem lembrar o poema de Carlos Drummond de Andrade No meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho Tinha uma pedra No meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento Na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho Tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho No meio do caminho tinha uma pedra. Um só quadro ficaria sempre no meio do caminho, inevitavelmente, mas vários quadros reforçarão ainda mais esta ideia. A ideia de que é preciso olhar, assumir o que se vê, com coragem, com atrevimento, energicamente. Esta é a lição da “inter somnia insomnia” de MCG. Vão ver. Daniel D. Dias *Um hipotético alienígena que divagasse uma primeira vez pelo nosso planeta, saberia distinguir, na sua determinação voluntária e inteligível, estruturas criadas por humanos ou criadas por abelhas, a diferença entre sonoridades harmoniosas de certos animais e de seres humanos, por exemplo? Daí a dúvida. ** “inter somnia insomnia” pode ser visitada até ao dia 15 de novembro de 2014, dias úteis das 17 às 20 horas, no Campo Grande, nº 28, 2º andar C , em Lisboa Featured image

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Brasil: Se pudesse rezava



Frantz Fanon (1925-1961), psiquiatra, pensador e combatente da luta pela libertação dos povos, que se notabilizou na descolonização da Argélia, avisou que os resultados das lutas pela liberdade e independência no mundo subdesenvolvido não seriam lineares e que poderiam mesmo ser algo controversos. Na altura, no rescaldo da II Guerra Mundial, em que se generalizavam as lutas pela independência no “terceiro mundo” – África, Ásia, América Latina -, ele apercebeu-se que a libertação dos povos submetidos à exploração colonial só seria efetiva depois de reproduzidos “in loco” os modelos de governação das potências colonizadoras. A sua experiência como psiquiatra em territórios colonizados apontava nesse sentido.

Era, para muita gente do seu tempo, algo chocante, mas estranhamente, pelos vistos, continua ainda a sê-lo para muita gente de hoje. Ele sugeria que não bastava tomar o poder para implantar um regime mais justo. Era quase inevitável que se seguisse a esse momento um período intermédio recriador de novas burguesias, nessa altura nacionais, certamente muitas delas com génese na luta anticolonial. Sem essa passagem não haveria possibilidades de êxito para implantar regimes mais avançados, socializantes, como se desejava então.

A história mostrou efetivamente que a maior parte das experiências iniciadas nos anos 50 e 60 do século passado, conduzidas frequentemente por gente idealista e abnegada ao ponto de a elas sacrificar a própria vida, deu origem a regimes muito diferentes daqueles que motivaram os seus promotores. Muitos desses regimes caíram nas mãos de novas burguesias, exploradoras, prepotentes e corruptas, por vezes tanto ou mais que as das antigas potências colonizadoras.

Todavia a tese de Fanon não era um libelo contra as lutas de libertação. Bem pelo contrário. Era um contributo para combater as impaciências “revolucionárias”.

A ideia de que se pode saltar por simples decreto, dum regime arcaico, para outro avançado, expurgando todos os vícios e males do passado, é uma ideia antiga que continua a ser propalada, especialmente por aqueles que não fazem intenção de mudar nada, porque, lá no fundo, receiam ou se opõem à mudança. Nenhuma mudança se faz sem sobressaltos, sem deceções, sem erros e sem contemporizações com situações abstrusas. Ser capaz de suportar a frustração, sem se conformar com ela mas sem nunca desistir de mudar, é um dom indispensável para levar de vencida qualquer projeto de mudança. Alguém dizia: temos de ganhar a guerra com os soldados de que dispomos. Quem diz soldados, diz povo, diz políticos, diz partidos, diz meios de comunicação social, diz cultura, diz sociedade, com todas as suas qualidades, fraquezas, defeitos, que jamais desaparecem por artes mágicas…


No Brasil estamos a assistir a uma iminente demonstração de que o retrocesso pode ocorrer em resultado da exploração destes fenómenos de impaciência, de inconformismo, que têm alguma razão objetiva, mas que são induzidos e empolados no seio da opinião pública, por propagandistas agitadores, bem treinados. É sabido que nenhum país do mundo eliminou em dez anos as desigualdades sociais, ou a miséria, e muito menos a corrupção. No entanto a eleição de Lula – antecessor de Dilma – representou, de facto, um corte com o passado e trouxe significativas mudanças ao Brasil. Em poucos mais duma década dezenas de milhões de pessoas saíram da pobreza extrema, que era crónica no Brasil, e o país passou a registar a mais baixa taxa de desemprego de sempre, facto significativo mesmo em termos internacionais. No plano mundial, pela primeira vez o Brasil assumiu-se por direito próprio como potência global, capaz de dar corpo a uma alternativa ao modelo de globalização dominante.

Estes sinais, por si só, justificariam apostar na continuidade da atual presidente. Não compreender que a supressão da corrupção não ocorrerá de um dia para o outro e que o excesso de expectativas, cultivado por quem, quando no poder, as negou sistematicamente, é algo criminoso. Decorre a clássica ligação do “purismo” esquerdista (de Marina Silva) que explora as fragilidades e contradições do partido (ou sistema de partidos) que tem gerido o Brasil, e os interesses oportunistas (candidato Aécio Neves) que representa as forças do retrocesso.

Se Dilma perder a favor de Aécio, não vai ser só a maioria da população do Brasil que vai perder. Vai perder também toda a América Latina, especialmente os seus países mais progressistas.  Mas, duma forma geral, todo o mundo perderá. É duvidoso que com Aécio no poder o Brasil concretize o projetado Banco de Desenvolvimento dos BRICS, com sede no Brasil, concorrente do FMI e do Banco Mundial. Provavelmente os BRICS passarão a RICS e o tal banco vai parar à Índia…

Quem ganhará com a derrota de Dilma? Para além duma certa burguesia nacional, os EUA, pouco confortáveis com uma sensível perda de influência ocorrida durante este consulado petista, poderão obter alguma folga e retardar a sua imparável crise, esgaravatando um pouco mais no seu antigo quintal sul americano. É porém duvidoso que a sua amiga UE ganhe alguma coisa com isso. Bem pelo contrário.


Não sou crente, como a Marina é, mas tenho pena. Se o fosse rezava para que, com todos os seus defeitos e contradições, o PT continuasse no poder por mais uns anitos, pelo menos… Para bem de todos. Até das muitas Marinas que há por aí.


Daniel D. Dias