segunda-feira, 12 de março de 2018

Hipocrisia verde


Face às alterações climáticas cuja evidência é atestada pela quase unanimidade da comunidade cientifica, o mundo dito desenvolvido adota estratégias hipócritas de combate ao aquecimento global. O documentário abaixo reproduzido parece ser uma comprovação desse facto.
Nas últimas semanas o frio glaciar deslocou-se do Polo Norte para regiões temperadas. Países como a Bélgica registaram 18 graus negativos. Em contrapartida o Polo Norte registou temperaturas positivas, 25 graus acima do que é habitual nessa região, coisa de que não há memória. A natureza na sua tendência para restabelecer os seus equilíbrios altera rotas dos ventos e correntes marítimas provocando tempestades tropicais e vagas de frio glaciar, com enorme impacto em zonas do globo não habituais. E tudo isto parece tender a agravar-se. Rapidamente.
Incontestavelmente os efeitos ambientais anómalos que vão ocorrendo por todo o mundo e que tendem a aumentar de intensidade, frequência e dramatismo, são fortemente induzidos pelo impacto do nosso estilo de vida sobre o planeta, designadamente pelo aumento exponencial da emissão de gases com efeito de estufa produzidos pela nossa indústria.
Fala-se deste problema, claro - era inevitável -, mas pouco na sua génese que permanece incólume. Sabe-se que é consequência da dependência dos combustíveis fósseis, do consumismo irracional e excessivo, do uso inadequado da energia. E sabe-se também que há alternativa viável para obviar a este estado de coisas: aposta massiva e sistemática na educação ambiental; adoção de políticas amigas do ambiente (habitação, consumo e transportes, mais racionais e energeticamente eficientes); incremento da substituição do petróleo e do carvão por energias renováveis, entre elas, claro está, a da bioenergia. Tudo isto é comprovadamente praticável e pode ter vantagens acrescidas em termos económicos, de saúde pública e de melhoria geral da nossa qualidade de vida.
Há pois alternativas ao petróleo. Mas as guerras da Líbia, da Síria, do Iraque, do Iémene, entre outros conflitos e focos de tensão atualmente existentes, têm todos em comum o facto de decorrerem em países estrategicamente importantes como produtores de petróleo ou como rotas petrolíferas. Isto é uma clara comprovação de que os países desenvolvidos, designadamente os mais relevantes da UE, não estão interessados numa mudança de paradigma. Pelo contrário, alimentam-no, acirram-no. As pessoas não estabelecem nexos de causa e efeito. Uma propaganda obsessiva e e sistemática, disfarçada de informação, camufla esta dramática realidade.
Em vez de mudar simula-se que se muda. Transfere-se para longe, para locais recônditos, os efeitos negativos do desrespeito pelo equilíbrio ambiental. O que importa é mostrar cidades bonitas, menos poluídas, mesmo que isso não passe de maquilhagem. Alimentam-se conflitos que publicamente se condenam, num vale de lágrimas de crocodilo. Promovem-se regras que se impõem aos outros mas que os próprios não respeitam.
O video anexo parece paradigmático desta hipocrisia verde. Verde, diria, com laivos de vermelho. Vermelho de sangue.

Daniel D. Dias

https://www.rtp.pt/noticias/mundo/bioenergia-a-dura-verdade_v1061179

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Que idade ou idades tenho?





Perguntam-me pela idade e não sei bem como responder. Qual idade? A que aparento? A que o Cartão de Cidadão regista? É que, em bom rigor, convivem várias idades nesta carcaça que habito há tanto tempo. Exemplifico:

Alguns dos meus ossos são, sem dúvida, muito velhos, e, pior do que isso, portam-se mal, desafinam, incomodam. Mas outros não tanto, nem dou por eles. Ainda estão razoavelmente ágeis. Diria que tenho ossos com oitenta, ou mesmo noventa anos, e outros com quarenta, quarenta e cinco.
Os músculos – ah, a carne - os músculos são tanta coisa… Num balanço global, diria que alguns perderam a elasticidade mas não a força e que outros perderam as duas coisas. Mas seria injusto não reconhecer que alguma dessa carne – pouca, diga-se - está como estava há vinte ou trinta anos. E se em algumas partes do corpo o músculo perdeu vigor. Noutras – infelizmente não na que pensais – ganhou força. Apertem a mão de um velho saudável e surpreendam-se. 

Os dentes, do uso, dos abusos, envelheceram muito, mas, no meu caso ainda vão funcionando: Dão para os gastos. Uns terão a idade do meu CC, enquanto outros já se finaram. Em contrapartida o meu olfato modernizou-se. Não diria que é mais novo mas que recuperou virtualidades juvenis. A língua – que, como sabeis, é dos órgãos mais ecléticos do nosso corpo – mantem potenciais agilidades e virtudes que já pouco utiliza. Diria que se conserva bastante bem e que o seu “savoir-vivre” melhorou. A falar não tropeça (e às vezes bem dava jeito que tropeçasse...) e  aprecia melhor agora acepipes - requintados ou singelos - que há vinte ou trinta anos quase ignorava. 

Que dizer dos olhos? Porta da alma, luz do rosto… Depende do tempo, dos dias. Às vezes estão espertos, perspicazes, sabedores. Ficam ágeis, juvenis. Noutras, nada veem, ou recusam-se a ver. Nessas alturas terão mais de noventa, seguramente. Mas sinto-os frequentemente muito novos, vigorosos, capazes de ver coisas que só crianças pequenas conseguem observar. Mais dioptrias, claro, mas muito menos argueiros.

E as mãos? As mãos estão mais precisas, mais rigorosas. Talvez porque a minha vida agora é mais comedida, mais parcimoniosa, quase não tremo. Neste domínio fiquei francamente mais novo.
Mas o nervo, a cachimónia, a mioleira? - quererão saber. Perdoem-me se vos pareço petulante, mas acho que neste domínio tenho rejuvenescido - e de que maneira. Claro, às vezes dou sinais de maturidade, o que pode confundir-se com senilidade. Mas não é a mesma coisa. Por exemplo, a capacidade de recusar algo agradável do outro lado da rua só para evitar o trabalho – e a frustração - do retornar ao ponto de partida… é, pode ser, um sinal dessa maturidade. Resumindo: A mente vai ficando mais leve, mais clara, mais paciente, talvez mais sábia. Estou mais desperto e tenho mais vontade de aprender, sabiam disso? É a pura realidade mas não sei quantos anos atribuir a esta performance.

O ser humano é um bicho estranho. Diferente em muitas coisas dos outros animais. Por exemplo na questão da idade é o único que conta o tempo que permanece vivo e dá importância a isso. Mas também é o único que não morre duma vez só e que envelhece por partes. Um gato, ou uma galinha, se ficam velhos, ficam velhos por igual. A cegueira ou a surdez nas suas velhices, por exemplo, é o prelúdio da morte. A decadência neles prossegue por igual. Mas nos humanos – salvo alguns que eu conheço que parece já terem nascido velhos… – pode não ser assim e muitas vezes parece ser mesmo o contrário. Beethoven escreveu as suas obras mais relevantes quando estava a sofrer uma surdez irreversível. O mesmo aconteceu com Jorge Luis Borges com a sua progressiva cegueira.

Que idade tenho, temos? Em rigor tenho, temos, várias. Concordam comigo?


Daniel D. Dias

Entendendo o socialismo, ou talvez não






Através dum homónimo amigo, tomei conhecimento deste vídeo https://www.facebook.com/RioConservador/videos/1807543399556145/ em que um suposto professor de economia, referindo uma demonstração académica de um outro PROFESSOR, põe em evidência, o porquê e a inevitabilidade do falhanço do socialismo.
A demonstração é impecável – ou quase, já direi porquê - porque segue uma lógica impactante, difícil de contestar.

Mas, como a temática é muito controversa e se presta a enormes equívocos, proponho que apreciemos o discurso mais de perto.
 
Com a primeira parte da exposição, que é a parte mais substancial do “experimento” do citado PROFESSOR, dificilmente alguém de bom senso e boa-fé estará em desacordo. Talvez se estranhe a demonstração do “falhanço do socialismo” por via duma analogia com métodos de distribuição de notas – não de banco mas de resultados escolares -, como se de mercadorias se tratasse. Mas, enfim, em ambiente académico, até parece aceitável. Sem dificuldade todos concordaremos com o aviso do PROFESSOR, que tudo o que incentiva a preguiça – preguiça que induz, debilita ou suprime, a sã competição e desfavorece a distribuição justa, acrescento eu - é contrário à justiça social. É fácil de aceitar e de compreender que numa sociedade justa as pessoas devam receber em conformidade com o seu esforço e nível de competência, e jamais em resultado de decretos governamentais que imponham arbitrariamente a distribuição da riqueza produzida.

O discurso do PROFESSOR segue o pressuposto de que socialismo é esse socialismo que impõe o igualitarismo por decreto ou à força bruta, pondo ao mesmo nível, preguiçosos e trabalhadores, produtores e parasitas. De facto esse tipo de práticas ocorreu várias vezes na história, por muitas e variadas razões, algumas justificadas, outras abusivas. Porém, há que reconhecê-lo, na sua génese a ideia de socialismo pouco ou nada tem a ver com essa prática, excepto nas generalizações mais simplistas ou em situações absolutamente excecionais, geralmente ocorridas em quadro de guerra. Mas é verdade que ainda existe quem defenda esse modelo que, na prática, – pelo menos em meu entender -, está nos antípodas do ideário socialista.

“Quando a recompensa é grande, disse o PROFESSOR, o esforço pelo sucesso é grande, pelo menos para alguns de nós, mas quando o governo elimina todas as recompensas, ao tirar dos outros sem seu consentimento, para dar a outros que não batalharam por eles, então o fracasso é inevitável”.

Aqui a demonstração já não me parece tão impecável. Fazer algo, produzir bens ou riqueza, deve ter recompensa mas não deve ser GRANDE nem PEQUENA: apenas JUSTA. Quem se esforça ou contribui mais, com a sua criatividade ou com o seu talento, pode, e talvez deva, obter maior compensação nos resultados, mas essa compensação, por maior que seja, não deve ser entendida como GRANDE ou PEQUENA, mas tão só como JUSTA. Ninguém se admira ou escandaliza que um jogador que marca golos aufira mais que um jogador que os não marca ou falta aos treinos…
Depois, não é ao governo que compete recompensar, mas aos intervenientes no próprio processo de produção. Eles, através da regulação imposta pelo mercado, é que estão em condições de decidir a forma de distribuir os resultados, de premiar ou penalizar o esforço.

“É impossível levar o pobre à prosperidade através de legislações que punem os ricos pela (sua) prosperidade. Cada pessoa que recebe sem trabalhar, outra pessoa deve trabalhar sem receber. O governo não pode dar para alguém aquilo que tira de outro alguém”.

O PROFESSOR, nesta altura, simplificando, revela-se tendencioso. Em primeiro lugar não tem em consideração as várias formas de ser rico. Lembro algumas: pessoas ricas por nascimento; pessoas ricas porque participam em processos especulativos pelos quais lucram sem que exerçam o que possa considerar-se atividade produtiva; pessoas ricas em resultado do exercício de alguma atividade altamente especializada; pessoas ricas em resultado duma capacidade ou de talentos invulgares e raros; pessoas ricas em resultado de atos ilícitos ou da prática de corrupção e abuso do poder…

Por aqui se pode inferir que há riqueza legítima e riqueza ilegítima; que há riqueza que pode incentivar o processo produtivo e outra que pode paralisá-lo; que há riqueza que gera mais riqueza e que há riqueza que gera mais pobreza. Mas o PROFESSOR trata a questão da riqueza como um axioma moral, de natureza quase bíblica, ignorando que a riqueza também pode – e deve - ser avaliada segundo a sua génese, e resume tudo, toda a complexa economia mundial, à existência de trabalhadores produtivos versus trabalhadores preguiçosos. Claro, também existe esse problema mas a questão da justiça na distribuição da riqueza está muito longe de se resumir a este desiderato.
Depois o PROFESSOR parece desconhecer que poucos governos no mundo atual pagam remunerações a trabalhadores. Há obviamente, a classe dos funcionários públicos, mas mesmo esses raramente são “empregados do governo” ou têm um só “patrão”, e quase nunca têm uma “folha de vencimentos” comum. De qualquer modo estão muito longe de constituir o grosso dos trabalhadores que habita o planeta produtivo.

“Quando metade da população entende que a ideia de que não precisa de trabalhar pois a outra metade da população irá sustentá-la, e quando essa entende que não vale a pena sustentar a primeira metade, então chegamos ao início do fim da nação. É impossível multiplicar a riqueza dividindo-a”. Remata o PROFESSOR, categórico, quase apocalítico.

Mas está enganado, PROFESSOR. O PROFESSOR zurze com razão num arcaico método de distribuição (divisão) da riqueza. Mas esse método, hoje em dia, não passa de uma ideia feita, de um resquício dum passado distante, que só se persiste em chamar à colação como “socialista”, porque sendo disfuncional, é um álibi de grande valia para o ideário economicista, dito neoliberal, que há várias décadas vigora no planeta agravando as desigualdades sociais. É um ideário que defende a distribuição da riqueza segundo o critério da competência (competitividade). Pretende ser justo, talvez pareça justo e seria bom que o fosse: que fosse uma via credível, como os seus adeptos defendem, para a almejada justiça social…

Mas infelizmente não é, PROFESSOR. É sobretudo um pretexto para impor certas políticas, dum certo darwinismo social que há muito se julgava erradicado mas que parece ter renascido das cinzas da história. Falta algo a este ideário para que a competitividade produza resultados justos. Competitividade sem igualdade de condições à partida, - igualdade de oportunidades à nascença - não funciona. É uma farsa, hipócrita, com trágicas consequências.

O PROFESSOR sabe que a competitividade é o melhor método conhecido para assegurar uma distribuição da riqueza produzida segundo o esforço e competência despendidos por cada cidadão produtor, mas omitiu algo fundamental. Que não há competição justa sem que esteja garantida à partida – i.e., logo à nascença - condições de igualdade de oportunidades.

Não se pode esperar que filhos de famílias desestruturadas, gente subnutrida, doentes, gente sem habitação, gente sem preparação escolar, tenha a mesma performance competitiva de quem não padece de nenhuma dessas limitações. Por isso o Estado, através dos seus governos deve gerir a riqueza pública no sentido de garantir as mesmas condições-base para todos.

Não se trata de roubar a uns para dar a outros ou de descriminar trabalhadores. Trata-se de criar condições para que cada cidadão, independentemente da sua origem, género, raça ou condição social, esteja em situação de igualdade na vida adulta para competir na atividade produtiva. É por isso que, saúde, ensino, alimentação, habitação, segurança, - elementos daquilo que geralmente se designa por Estado Social - devem ser efetivos, universais, iguais para todos e da melhor qualidade possível. Sobretudo nas fases estruturantes da vida – infância e juventude.

Se forem implementadas estas condições básicas de sobrevivência extensivas a todos os cidadãos - a tal igualdade de condições à partida - a competitividade terá, a curto ou médio prazo, resultados mais consistentes e a riqueza aumentará. A experiência em países mais avançados na prática do Estado Social comprovam isso. E hoje há condições matérias mais que suficientes para concretizar esse objetivo. Sem perseguir ou roubar ninguém.

E, por ora, mais não digo. Também “encerro aqui a minha aula”, PROFESSOR.

Daniel D. Dias

domingo, 13 de agosto de 2017

No outro lado

Não é possível mudar
apenas simulando a mudança

não é possível viver
apenas simulando estar vivo

a importância do que parece
supera a importância do que é

assim é há milénios
já no tempo dos faraós assim era
desde as cavernas que assim é
e assim, parece, vai continuar

o simulacro do viver é o nosso drama
drama reversível
em qualquer  momento
n o outro lado do espelho


Daniel D. Dias

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Venezuela: Charme discreto ou mácula sem perdão?


A Venezuela há muito que tem ricos, tão ricos que muitos vão passar o fim-de-semana à sua casa de férias que é do outro lado do Cararibe, na Florida. Claro: vão de jacto privado. Qual é o problema? A Venezuela é terra próspera.

A Venezuela teve muitos presidentes, quase sempre corruptos, durante muito, muito tempo, e o curioso é que já ninguém se lembra disso. Agora só se fala na ditadura daqueles malditos, daqueles fanáticos e loucos, esquerdistas… E na falta de respeito pela Constituição – até há muito pouco símbolo e sustentáculo do próprio regime -, que tão odiada e amaldiçoada tem sido, mas que, de repente, ganha virtudes inesperadas.

A Venezuela é um país rico, riquíssimo. Tem muitas, mesmo muitas riquezas: uma delas é a maior reserva de petróleo do mundo. É mesmo verdade. A Venezuela tem uma reserva petrolífera maior que a da Arábia Saudita e que a da Rússia… Só isso torna a Venezuela num país muito especial e talvez justifique muito do alarido que a “comunidade internacional” alardeia por aí.

Mas a Venezuela é um país tremendamente desigual. Ou melhor: A Venezuela era até há muito pouco tempo – menos de 20 anos - um país tremendamente desigual. Nesta altura é só um país razoavelmente desigual. Na Venezuela, antes de Chávez, os pobres não existiam. Melhor: existiam mas não eram reconhecidos. As zonas habitadas pelos pobres – essas imensas favelas (barrios), a perder de vista, a cercar as cidades, a tombar sobre os rios, onde viviam milhões e milhões de pessoas em condições deploráveis – eram registadas nos mapas oficiais da época, como “zonas verdes”… Quem tiver dúvidas ainda pode consultar.

Chávez chegou ao poder e começou de imediato a contestação. Para além das conspirações e tentativas de golpe de estado - uma delas quase concretizada em 2002 - todos os “media” diariamente, minuto a minuto, durante anos, bombardearam a atenção do público com a loucura de Chávez, com o seu caráter ditatorial, com a destruição da economia que ele estava a processar, etc.

Mas que crime afinal cometeu Chávez? Perseguiu a Igreja? Não, Chávez era católico. Perseguiu os ricos? Não. Durante o tempo que esteve no poder os ricos enriqueceram ainda mais. Que fez ele: No essencial utilizou o imenso rendimento do país – especialmente o proveniente do petróleo - para criar condições favoráveis à luta contra a pobreza. Nesse sentido foram construídos, milhões de casas – com razoável qualidade - para substituir os casebres insalubres, muitos hospitais, escolas e universidades. Pela primeira vez na história, foi erradicada a pobreza extrema. As pessoas passaram a ter acesso ao ensino gratuito e generalizado; foi reduzido, drasticamente, o analfabetismo. Os cuidados de saúde passaram a ser universais e gratuitos, melhorando substancialmente a saúde pública. Tudo isto levou a que a Venezuela passasse a integrar os países com Elevado Índice de Desenvolvimento Humano – IDH (lugar 71, em 188 países, a par da Turquia, à frente do Brasil, do México, da Colômbia). E isto são dados de 2016, já em pleno período de crise e de contestação.

Chávez, até à sua morte precoce em 2013, foi sempre a votos. E algumas vezes perdeu. Respeitou sempre os resultados e a “sua Constituição”. Mas sempre prosseguiu o seu programa. Para ele o desenvolvimento social não punha em causa a riqueza. Era adepto de um “mundo multipolar”. Por isso os ricos continuaram ricos – mais ricos – e poderosos. Quando foi substituído por Maduro – inevitavelmente um Maduro ainda muito pouco maduro -, a conspiração aumentou. Era então a grande oportunidade de acabar com a veleidade chavista de construir uma sociedade mais igualitária, há muito desejada. Mas, para grande desgosto da oposição, Maduro acabou por ganhar. À tira, mas ganhou.

Porém, a menor “estaleca” política de Maduro, a crise generalizada que então grassou no mundo, a queda do preço do petróleo, deram um novo impulso à “oposição”. Maduro, tal como Chávez, fala de paz, mas a oposição não quer nada com Maduro. A questão não está em ceder: está em desaparecer, em acabar com o regime. Não há acordos possíveis mesmo quando mediados pela Igreja.
A culpa é só da oposição? Claro que não. Maduro, ou o que ele representa, poderia talvez fazer maiores cedências, estabelecer um calendário de “conquistas” mais diluído no tempo, estabelecer alianças com classes intermédias, vender a gasolina mais cara, (que diabo, pelo menos isso), suavizar a irritante retórica esquerdista… Resultaria? Talvez sim, talvez não. No Brasil e na Argentina não houve projetos tão “socializantes” e a resposta que deram os poderosos desses países vejam qual foi. Observe-se o que se passa atualmente.

Maduro não recua e não se cala, e a oposição – que afinal é mundial, ou quase -, avança com a técnica mais moderna de liquidar estados. As revoluções coloridas, tipo primavera árabe, que combinam violência, contestação e propaganda sistemática através dos “media” e redes sociais. A sabotagem económica – bem real – o pânico gerado pelo boato lançado nos “media”, levam o público a açambarcar. Muitos bens são destruídos para gerar caos que é ampliado nos “media” e nas redes sociais. O crime violento – endémico na Venezuela – é usado para aumentar o caos e depois é atribuído às forças do regime.

É neste quadro que em 2015 a oposição vence as eleições legislativas. Todavia, o governo venezuelano é dirigido pelo presidente, não pelo parlamento, e, à oposição, que não está interessada em acordos, só lhe resta… sabotar. Sabota sistematicamente tudo porque só tem um objetivo: acabar com o regime.

É bom de ver que Maduro – e o que ele representa, entalado nesta situação cada vez mais extrema – só tem duas possibilidades: sucumbir ou avançar. A violência – muito ampliada pelos “media”, reconheça-se - aumenta nas ruas e os mortos – talvez maioritariamente chavistas – são contados como membros da oposição. A ideia de caos avança reforçada pela pressão internacional. É deste caldo que surge a ideia de refundar a constituição. É uma ideia estranha, talvez mesmo suicida, mas cuja lógica parece fácil de entender. É o regime a tentar sair do sufoco mesmo arriscando o erro.

É estranho isto? Não, não é. Se a direita estivesse no poder e nestas circunstâncias, o que faria? Seguramente há muito que teria decretado o estado de sítio. Por muito menos outros governos na América Latina já antes o fizeram. Veja-se, por exemplo, Temer, no vizinho Brasil. Periclitante no poder, que usurpou e que exerce ilegitimamente, já por duas vezes convocou as forças militares para as ruas.


A Venezuela é um paradigma deste nosso mundo controverso. À direita tudo se perdoa, mesmo a corrupção. O que não deve estranhar-se porque, afinal, a corrupção sempre foi o “leitmotiv” dessa direita interesseira. O que é preciso é manter a imagem, o tal charme discreto. Mas à esquerda, tudo deve brilhar. Tudo deve ser perfeito, inteligente, virtuoso, belo, incorruptível. A esquerda está proibida de pecar, de cometer erros. Um tostão gasto com um pobre preguiçoso é um crime incomensuravelmente maior do que milhares de falências fraudulentas cometidas deliberadamente por trafulhas ambiciosos.

A Venezuela é o paradigma dum mundo em que a pobreza ainda não é entendida apenas como uma desgraça evitável. Dum mundo em que persiste a ideia de que a miséria é um estigma, um castigo da natureza, uma mácula sem perdão.

Daniel D. Dias



quarta-feira, 21 de junho de 2017

Maré de reversões

Coisas do meu vizinho – 8


O meu vizinho logo pela manhã pareceu-me particularmente animado.

- Bom dia vizinho! Não me parece ter ficado desanimado com esta última reversão de Trump, - atirei eu referindo-me à decisão de Trump de retirar os EUA do acordo de Paris sobre o clima.

- Bom dia! Pelo contrário, caro amigo: Esta e outras reversões, ou muito me engano ou vão ter resultados surpreendentes. Estamos prestes a assistir a uma inversão de tudo o que se tem passado nas últimas décadas. Veja só: Com a saída dos EUA dos acordos de Paris não tardará a vermos a China a resolver o seu tremendo problema de poluição encomendando aos EUA toda a sua “produção suja”. Só um grande país produtor como os EUA pode resolver as necessidades doutro grande produtor como a China. E os EUA não hesitarão em tornar-se na “nova fábrica suja do mundo” para voltar a enriquecer. E talvez consigam mesmo enriquecer “again”. Pelo menos durante um tempo…

Fiquei perplexo.

- Espanta-se? E se eu lhe disser que não vai ser só a China a seguir esse caminho? - Prosseguiu o meu vizinho, acaloradamente, como de costume. O Japão, a Europa, talvez até os seus amigos íntimos, Austrália e Canadá, não hesitem também em seguir o exemplo da China. Nem que seja só para “ajudar” o amigo americano…

Continuei perplexo, mas o meu vizinho prosseguiu ressumando convicção.

- Ainda não se sabe o que fará a Inglaterra que continua perdida em busca do seu império perdido. Coitada, ainda não sabe que o perdeu. Mas talvez se tenha uma ideia mais clara do que vai fazer na próxima semana com o resultado das eleições promovidas pelos conservadores ingleses. Estavam com tão grandes ambições esses velhos abutres que não hesitaram em marcar novas eleições a poucos meses das últimas, que ganharam, e em fabricar uma nova Thatcher, versão corcovada. Mas, ou muito me engano, ou irá sair furado esse louco desígnio: Theresa May perderá as eleições (ou ficará sem condições para governar) e teremos então, à vista,uma outra reversão ainda mais espantosa.

- Outra reversão? Qual? – Inquiri verdadeiramente intrigado.

- Não está de ver? O regresso do Reino Unido à mãe Europa, caro amigo… - disse-me fixando em mim os seus olhos escancarados.

- Não quero acreditar no que diz, vizinho. – balbuciei incrédulo

- Olhe que eu também não, eu também não… - sussurrou o meu vizinho, aparentemente lamentando este seu último prognóstico.

O meu vizinho logo pela manhã pareceu-me particularmente animado.



Daniel D. Dias

Lição de Chaplin



Nos anos sessenta li um romance que me causou profunda impressão de tal forma que ainda hoje, embora que vagamente, o recordo. Chamava-se ” Os homens e os outros” e o seu autor era o escritor italiano, Elio Vittorini. Elio Vittorini, fez parte da resistência italiana na II Guerra Mundial, participou em diversos e antagónicos movimentos políticos que ocorreram na primeira metade do século XX e, talvez por isso, pelas dificuldades que observou e que viveu, apercebeu-se da complexidade do ser humano, da sua natureza contraditória, que o faz, ora superar-se evidenciando os seus dotes mais nobres – “os homens”-, ora transformar-se num ser cruel e insensível, capaz das maiores desumanidades – “os outros”.

Sempre tive a ideia que a experiência de vida de cada um de nós, o enquadramento social, os fatores genéticos, o histórico familiar, o índice de escolaridade, o nível material de vida, entre outros fatores, é que determinam a natureza da nossa personalidade. Ou seja: penso que, no essencial, somos o que a sociedade nos projeta e o que nos deixa ser. Por isso é crucial entender que é, prioritariamente, a partir do enquadramento social, a partir da coletividade, que podemos – e que devemos – projetar-nos (e proteger-nos) como seres humanos e não a partir da competitividade, como agora se difunde a propósito de tudo e de nada. A competitividade é de facto importantíssima, determinante mesmo, mas só depois de assegurada a igualdade de condição à partida. Alimentação, habitação, segurança, educação e cuidados de saúde, são fatores estruturantes dessa igualdade. Ou seja: o tal “welfare state” (estado social). A sociedade deve pois organizar-se de forma a assegurar prioritariamente este desígnio básico - que, aliás, nada mais é que o seu “leitmotiv”- pelo menos até à maioridade de cada individuo, independentemente da sua condição.

Mas se somos (no essencial) aquilo que a sociedade deixa que sejamos e se é nas dificuldades que se pode aferir a nossa natureza profunda, ainda assim nada põe em causa a pertinência do chistoso dito: “Aquilo que a natureza não dá a universidade de Saragoça também não dá…” Creio que todos entendemos o que isto quer dizer. Por melhor que seja o percurso de uma vida, por mais excelente que seja a preparação base de cada pessoa, haverá sempre lugar para um “toque” pessoal, para um elemento aleatório – com significado semelhante ao do monólito negro que surge no filme “2001, odisseia no espaço” -, capaz de orientar a performance de cada um no sentido de “fazer a diferença”. Algo que cada um pode encontrar em si próprio, que só depende de si e que o torna melhor. Um dom de si.

Acho que foi justamente essa a lição Chaplin com o seu personagem carismático, Charlot, que se tornou numa vedeta universal que transcende todas as fronteiras linguísticas e culturais. Atrevo-me a dizer que não há ninguém no mundo que não seja tocado por esse personagem. Mas porquê? Não é certamente pelas suas qualidades morais que muitas vezes são reprováveis. Não é pela espetacularidade dos filmes em que figura pois frequentemente são muito pobres. Não é (apenas) pela lucidez e generosidade das suas mensagens pois há muitos outros filmes com mensagens equivalentes que nunca atingiram a mesma relevância universal.

Há um elemento constante nos filmes de Charlot que sensibiliza toda a gente, que não deixa ninguém indiferente, embora não seja objetivamente percecionado. Seja qual for a situação que o personagem viva – desemprego, miséria, guerra, prisão - Charlot está sempre ACIMA da situação que vive, nunca se deixa dominar por ela: Sabe comer “de garfo e faca” uma sola de bota velha; insere na mão, com requinte, a luva suja e esburacada; fuma como um cavalheiro fumaria uma ponta de charuto apanhada do chão…

Charlot incentiva a nossa auto estima, ajuda-nos a perceber que ser melhor (também) depende de nós. E nós gostamos disso... Obrigado Chaplin!


Daniel D. Dias