Nos anos sessenta li um romance que me causou profunda impressão de tal
forma que ainda hoje, embora que vagamente, o recordo. Chamava-se ” Os homens e
os outros” e o seu autor era o escritor italiano, Elio Vittorini. Elio
Vittorini, fez parte da resistência italiana na II Guerra Mundial, participou
em diversos e antagónicos movimentos políticos que ocorreram na primeira metade
do século XX e, talvez por isso, pelas dificuldades que observou e que viveu,
apercebeu-se da complexidade do ser humano, da sua natureza contraditória, que o
faz, ora superar-se evidenciando os seus dotes mais nobres – “os homens”-, ora
transformar-se num ser cruel e insensível, capaz das maiores desumanidades –
“os outros”.
Sempre tive a ideia que a experiência de vida de cada um de nós, o
enquadramento social, os fatores genéticos, o histórico familiar, o índice de
escolaridade, o nível material de vida, entre outros fatores, é que determinam
a natureza da nossa personalidade. Ou seja: penso que, no essencial, somos o
que a sociedade nos projeta e o que nos deixa ser. Por isso é crucial entender
que é, prioritariamente, a partir do enquadramento social, a partir da
coletividade, que podemos – e que devemos – projetar-nos (e proteger-nos) como
seres humanos e não a partir da competitividade, como agora se difunde a
propósito de tudo e de nada. A competitividade é de facto importantíssima,
determinante mesmo, mas só depois de assegurada a igualdade de condição à
partida. Alimentação, habitação, segurança, educação e cuidados de saúde, são
fatores estruturantes dessa igualdade. Ou seja: o tal “welfare state” (estado
social). A sociedade deve pois organizar-se de forma a assegurar
prioritariamente este desígnio básico - que, aliás, nada mais é que o seu
“leitmotiv”- pelo menos até à maioridade de cada individuo, independentemente
da sua condição.
Mas se somos (no essencial) aquilo que a sociedade deixa que sejamos e se é
nas dificuldades que se pode aferir a nossa natureza profunda, ainda assim nada
põe em causa a pertinência do chistoso dito: “Aquilo que a natureza não dá a
universidade de Saragoça também não dá…” Creio que todos entendemos o que isto
quer dizer. Por melhor que seja o percurso de uma vida, por mais excelente que
seja a preparação base de cada pessoa, haverá sempre lugar para um “toque”
pessoal, para um elemento aleatório – com significado semelhante ao do monólito
negro que surge no filme “2001, odisseia no espaço” -, capaz de orientar a
performance de cada um no sentido de “fazer a diferença”. Algo que cada um pode
encontrar em si próprio, que só depende de si e que o torna melhor. Um dom de
si.
Acho que foi justamente essa a lição Chaplin com o seu personagem
carismático, Charlot, que se tornou numa vedeta universal que transcende todas
as fronteiras linguísticas e culturais. Atrevo-me a dizer que não há ninguém no
mundo que não seja tocado por esse personagem. Mas porquê? Não é certamente
pelas suas qualidades morais que muitas vezes são reprováveis. Não é pela
espetacularidade dos filmes em que figura pois frequentemente são muito pobres.
Não é (apenas) pela lucidez e generosidade das suas mensagens pois há muitos
outros filmes com mensagens equivalentes que nunca atingiram a mesma relevância
universal.
Há um elemento constante nos filmes de Charlot que sensibiliza toda a
gente, que não deixa ninguém indiferente, embora não seja objetivamente
percecionado. Seja qual for a situação que o personagem viva – desemprego,
miséria, guerra, prisão - Charlot está sempre ACIMA da situação que vive, nunca
se deixa dominar por ela: Sabe comer “de garfo e faca” uma sola de bota velha;
insere na mão, com requinte, a luva suja e esburacada; fuma como um cavalheiro
fumaria uma ponta de charuto apanhada do chão…
Charlot incentiva a nossa auto estima, ajuda-nos a perceber que ser melhor
(também) depende de nós. E nós gostamos disso... Obrigado Chaplin!
Daniel D. Dias
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